publicado por Adriano Wilkson, do UOL, dia 20/11/2023
Ela é uma menina trans. Tem 15 anos e mora com a mãe em um bairro de classe média de Belo Horizonte. Como muitas adolescentes, vai a pé para a escola, gosta de rock e, na pandemia, deixou o cabelo crescer.
Mas, desde maio de 2022, desenvolveu um medo que poucos de sua idade conhecem: o medo de ir ao banheiro.
O sentimento nasceu após ser filmada por uma colega quando matava aula no banheiro feminino do Colégio Santa Maria Minas. A aluna era a irmã do então vereador Nikolas Ferreira (PL-MG), e o vídeo foi parar no canal do parlamentar, hoje deputado federal. Na postagem, ele conclamava pais a boicotarem o colégio.
“Basicamente o que eles estão fazendo é que um homem, que é um potencial estuprador, fique num ambiente cheio de mulheres”, dizia Nikolas Ferreira.
Desde a postagem, a menina virou alvo de críticas e ameaças que levaram à deterioração de sua saúde mental. Seu quadro preexistente de TDAH, depressão e ansiedade agravou-se.
O vídeo alcançou 236 mil visualizações e tem mais de 5.000 comentários. No perfil da escola do Instagram, um homem escreveu: “Se continuar deixando traveco usar banheiro feminino, o bicho vai pegar pra vocês. Não desafiem os pais porque vai ser pior pra vocês”.
“Fiquei arrasada, me senti muito usada e desrespeitada”, disse a adolescente ao UOL.
A reportagem conversou com ela e com sua mãe para entender como a publicação do vídeo afetou o cotidiano da família. O texto não revelará seus nomes para evitar que sejam alvo de outros ataques.
“Quando vi o vídeo, mexeu muito comigo. Ele disse que a minha filha era um possível estuprador, um homem que tem pinto. Eu ia comentar, defendendo, cheguei a começar a digitar, mas desisti”, afirma a mãe.
Caso foi parar na Justiça
Feito com celular, o vídeo mostra a adolescente lavando as mãos enquanto é confrontada pela irmã do deputado, que afirma que a colega não tinha direito de usar o banheiro feminino por “ser menino”.
Uma funcionária da escola defende a adolescente ofendida, que se controla para não levantar a voz. A discussão foi gravada.
Quatro meses após a publicação do vídeo, Nikolas Ferreira foi eleito deputado federal pelo PL —o mais votado do Brasil em 2022 com mais de 1,47 milhão de votos.
Em abril de 2023, o Ministério Público de Minas Gerais o denunciou pelo crime de transfobia, que desde 2019 pode ser equiparado ao de racismo, conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
A Justiça analisou as provas do processo e, em setembro, aceitou a denúncia, tornando Nikolas réu. Se for condenado, ele pode ter de pagar indenização e perder direitos políticos. Não há previsão para a conclusão do processo.
A defesa argumenta que o deputado apenas exerceu seu papel de vereador defendendo valores conservadores próprios, amparado no direito à liberdade de expressão.
“O vídeo feito pela irmã do então vereador, que se sentiu constrangida, posteriormente foi divulgado nas redes sociais sem citar nomes ou mostrar rosto. O deputado aguarda a citação referente ao processo e informa que exercerá todos os meios de defesa nos autos do processo para ter sua imunidade parlamentar e defesa de sua manifestação do pensamento preservados”, escreveram os advogados de Nikolas em nota enviada ao UOL.
Caos no colégio
Mais de 50 pais e mães de crianças do ensino infantil, do fundamental e do médio ameaçaram tirar os filhos do colégio caso a adolescente continuasse a usar o banheiro feminino.A gravação virou assunto de grupos de mães e pais da escola nos meses seguintes e mobilizou o promotor Mário Konichi Higuchi Júnior, que colheu depoimentos e reunir provas para embasar a denúncia contra Nikolas.Marcelo Moreira, o diretor da escola, disse ao promotor que a direção se amparou na Resolução 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que desde 2015 garante a estudantes trans o direito de usar o banheiro de seu gênero.
“Os pais questionaram a posição do colégio, dizendo que nós somos uma instituição católica, que não deveria permitir o uso do banheiro feminino. Isso nos trouxe muito transtorno”, disse o diretor.
Alguns pais pediram a expulsão da adolescente. Outros queriam que a direção construísse um banheiro para uso exclusivo da única aluna trans da escola.
As críticas vieram também nas redes sociais, que foram inundadas de mensagens contra o colégio. “Os pais não aceitavam. Por parte dos alunos, não tivemos problema nenhum”, disse o diretor.
A exceção foram dois estudantes do terceiro ano do ensino médio, que ameaçaram bater na adolescente se ela voltasse a usar o banheiro. A cena foi presenciada por outra aluna, que a confirmou ao MP.
No entendimento do promotor, um deputado tem imunidade para dar opiniões desde que elas não configurem crime de ódio. “O então vereador incitou o ódio contra pessoas trans”, afirmou Mário Higuchi.
O promotor rastreou o homem que chamou a adolescente de “traveco” nos comentários do vídeo. Ele prestou depoimento, e a cena, registrada pelo MP, serve como prova da capacidade de mobilização do discurso de Nikolas.
“Me deixei levar pelo momento e postei com raiva, por imaginar minha filha nessa situação, mas eu não conhecia as crianças envolvidas. Fui conduzido a isso, estou com muita vergonha”, disse o homem em depoimento.
Mas o estrago estava feito. Nas páginas do processo, consta o laudo da psicóloga Daniela Arouca Martins, atestando que a menina trans “sentiu-se acuada, ofendida e pressionada” após a exibição do vídeo.
A adolescente já vinha sendo acompanhada pela profissional para o tratamento de ansiedade, depressão e TDAH.
“Infelizmente, por um período de tempo, [ela] foi o centro de olhares e opiniões, algumas vezes compreensivas e, em outros momentos, agressivas, a deixando assustada e voltando a ampliar seu quadro de ansiedade e medo”, escreveu a psicóloga.
“Hoje vivemos um abismo social sobre o tema no Brasil”, diz o advogado Carlos Nicodemos, que representa a ONG Minha Criança Trans, que atua na defesa dos direitos dessa população e tenta se tornar parte do processo.
Medo de ir ao banheiro em shopping
Um ano e quatro meses após o vídeo ser postado, a adolescente afirma que a escola continua respeitando seus direitos. Seu nome social está na lista de presença, no boletim e nas provas.
Quando a turma se divide nas aulas de educação física, ela fica no grupo das meninas. Nas aulas de história e de sociologia, professores orientam alunos sobre os direitos das minorias.
Ela tem o apoio da mãe, mas o pai ainda não entendeu que agora tem uma filha, não um filho.
Seu humor tem variado. Em alguns dias se diz bem. Em outros, péssima. Mas ressalta que o tempo deve curar as feridas.
Ela afirma que ainda tem medo de usar o banheiro feminino do shopping, mas voltou a entrar tranquila nos da escola. Nenhuma outra estudante reclamou da presença dela desde então, conta.