publicado no dia 13 de setembro no portal Semana On
Interpelação exige que a ALEMS responda sobre bases científicas da ‘moção de repúdio’ de que foi alvo
A ONG Minha Criança Trans interpelou, por transfobia, por meio do escritório Nicodemos Advogados, o deputado Rafael Tavares, que no dia 20 de junho deste ano apresentou uma moção de repúdio contra a instituição. “Na moção, apresentada em razão da participação de crianças e adolescentes trans na 27ª edição da Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo, fica evidente o preconceito e a falta de informação do referido parlamentar sobre transgeneridade infanto-juvenil”, afirma a ONG.
O texto define como questão central o fato de que crianças não possuem maturidade necessária para decidir sobre sua orientação sexual e afirmam que o processo de transição envolve implicações irreversíveis, o que faz com que não devam opinar sobre isso. Alegam que, dessa forma, as crianças estarão seguras apenas em um ambiente “onde não haja preocupação com a influência desse tipo de ativismo”, devendo ser promovida a proteção da família e o bem-estar da criança.
“A gente nota que é um texto de mera opinião, sem nenhuma comprovação acerca do alegado, sem citar estudos científicos ou algo que justifique o repúdio descrito”, explica a presidenta da ONG, Thamirys Nunes. “Além disso, o texto erra ao caracterizar o caso como orientação sexual e não identidade de gênero, como deveria ser”, completa.
Thamirys aponta, ainda, que a moção de repúdio cita que “houve a participação de diversas crianças caracterizadas como pertencentes ao gênero oposto”. “Essa fala é absolutamente transfóbica. Ninguém se caracterizou do gênero oposto porque identidade de gênero não é fantasia”, pontua. “É essa total falta de conhecimento, todo esse preconceito, que faz o Brasil estar sempre no rol de países mais violentos para toda a comunidade LGBT+, mas em especial, para as pessoas trans e travestis”, conclui a ativista.
A interpelação exige que seja deferida a determinação da Interpelada, para que a Assembleia responda, em até 48 horas, as perguntas: “quais são as bases científicas e elementos técnicos utilizados pela Assembleia Legislativa para fundamentar o argumento de que as “crianças não possuem a maturidade necessária para decidir sobre sua orientação sexual, muito menos sobre uma possível mudança de gênero?”; “qual é a considerável controvérsia gerada pelos estandartes com os dizeres “crianças trans existem” alegada pela Assembleia Legislativa?”; “quais são as bases científicas e elementos técnicos utilizados pela Assembleia Legislativa para fundamentar o argumento de que os processos de transição envolvem ‘implicações físicas e psicológicas irreversíveis’?”; “quais são os ‘procedimentos’ mencionados pela Assembleia Legislativa que poderiam prejudicar o ‘desenvolvimento físico, emocional e psicológico’?”; “quais são as bases científicas e elementos técnicos utilizados pela Assembleia Legislativa para fundamentar o argumento de que tais procedimentos mencionados no quesito quarto podem prejudicar o ‘desenvolvimento físico, emocional e psicológico’?”.
“O silenciamento sobre a realidade das crianças que vivenciam a transgeneridade é vista como uma estratégia de supressão das vivências subjetivas dessas crianças, decorrente de visões estereotipadas sobre gênero e do preconceito contra a população transgênero” destacou Carlos Nicodemos, advogado representante do caso na Justiça. “Isso se mostra de forma clara pelo preconceito quanto a esses indivíduos, alvos de discriminação e violência, especialmente no Brasil, país com os maiores dados de violência transfóbica, incluindo as de maior gravidade como homicídios e lesões corporais graves, tendo em vista que jovens e crianças trans estão sendo assassinados cada vez mais cedo no Brasil, como foi o caso Keron Ravach, uma menina trans de apenas 13 anos, espancada até a morte e deixada em um terreno baldio no dia 3 de janeiro deste ano na cidade de Camocim, no Ceará”, complementou Nicodemos.
A organização
Fundada em 2020 por Thamyris Nunes, Minha Criança Trans é a primeira organização no Brasil, e na América Latina, a tratar exclusivamente das questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos das crianças e adolescentes transgêneres. A organização – que possui 580 famílias associadas – se destina a desenvolver ações afirmativas dos direitos humanos de crianças trans, de forma universal, indivisível e interdependente com outros direitos para plena cidadania. Sendo assim, Minha Criança Trans é a referência nacional na promoção e garantia da proteção integral das crianças e adolescentes transgêneros. Nesta edição da Parada do Orgulho LGBTI+, a organização levou 120 famílias à Avenida Paulista, em São Paulo, com um grito de guerra: “Ser trans é um direito. Nossos filhos só precisam de respeito”.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a transexualidade é considerada uma condição relacionada à saúde sexual, a qual significa que a pessoa transgênero não se identifica com o sexo biológico atribuído no nascimento. Tal fator pode ocorrer ainda na infância, situação repleta de preconceitos a qual dificulta a aceitação da própria identidade da criança. Segundo o relatório “Peditrics” do TransYouth, estudo longitudinal em grande escala que acompanha cerca de 300 crianças transgênero nos Estados Unidos, quase a totalidade de crianças no grupo ainda se identificava com o seu novo gênero após cinco anos. Contudo, no Brasil, não existem dados específicos sobre a questão, entrando na pauta apenas com recortes como “a violência”.
Um estudo realizado em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) mostra que entre 120 famílias, 77,5% de crianças e adolescentes transgêneros, entre 5 e 17 anos, sofreram bullying no ambiente escolar. A pesquisa foi organizada pelo Grupo Dignidade em 2021, o qual ouviu familiares de alunos trans de 62 cidades brasileiras.
“A luta pela despatologização das identidades trans tem sido reivindicada pelos movimentos de luta política de pessoas transgêneras e sido reconhecida pelos estudos sociais de gênero e sexualidade e pela OMS. Essa reivindicação parte da premissa que a transgeneridade, especialmente a transexualidade, não se configura como doença, mas como outra possibilidade de expressão e vivência de gênero não cisgênera”, compartilha Nicodemos.