Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes 18/05/2024.

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https://www.conjur.com.br/2024-mai-18/18-de-maio-dia-nacional-de-combate-a-exploracao-sexual-de-criancas-e-adolescentes

Muitos são os desafios na moderna democracia brasileira para a consolidação de uma plena cidadania dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Neste 18 de maio, por meio da Lei 9.970 de 2000, o Brasil promove uma ampla mobilização em torno da agenda dos direitos das crianças e adolescentes, em especial quanto ao combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes.

Desde 1985, o país faz uma travessia com conquistas, êxitos e algumas dúzias de contradições institucionais que precisam ser entendidas no contexto de que não vivemos em uma plena democracia social e ainda são muitas as interseções discriminatórias na superestrutura do Estado.

No campo das conquistas, inegável que vivemos desde a Constituição de 1988 em um processo significativo de edições de leis que demarcaram fortemente a vocação do Estado-nação Brasil de promulgar e sancionar leis como uma resposta institucional para a sociedade.

Nas considerações de muitos, autointitulados de garantistas, vivemos na década de 1990 um verdadeiro processo da “Era dos Direitos” de Noberto Bobbio, de verde e amarelo. E para ilustrar este cenário, apontam algumas legislações promulgadas e, entre elas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei 8.069/90.

O ECA, assim conhecido pela ampla maioria da sociedade brasileira, constitui, sem sombra de dúvidas, uma das maiores conquistas civilizatórias para a sociedade, especialmente pela capacidade de retirar do pântano obscuro da segregação social e política crianças e adolescentes, que por anos, décadas e séculos padeceram sob o controle punitivo da pobreza, na condição de menores em situação irregular.

A resposta do Estado brasileiro no processo de redemocratização e na onda garantista foi dar contorno normativo para as crianças e adolescentes. E numa só tacada, entre 1988 e 1990, assumiu, nacional e internacionalmente, fortes compromissos legais.

O primeiro deles foi a constituição do marco constitucional dos direitos humanos de crianças e adolescentes, através do artigo 227, estabelecendo que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Para além de reconhecer a condição deste novo ator social, criança e adolescente, como sujeito de direitos humanos em peculiar processo de desenvolvimento, com contornos de prioridade absoluta, caberá à família, à sociedade e ao poder público promover a proteção integral para uma plena cidadania.

Brasil na ONU

Na toada da democracia social, em 1989, o Brasil também se torna o primeiro país a assinar a Convenção dos Direitos das Crianças da ONU (Organização das Nações Unidas), que impulsionando a doutrina da proteção integral, pontuou que:

Artigo 2 -Os Estados Partes devem respeitar os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança em sua jurisdição, sem nenhum tipo de discriminação, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiência física, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais.”

E por fim, formando uma verdadeira trilogia normativa para cidadania das crianças e adolescentes, edita o ECA, que no conjunto de suas normas estabeleceu que:

“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”

Consolidada a lógica normativa do Estado brasileiro, decorrente do processo de redemocratização, fica a pergunta, qual foi o nível de acompanhamento das políticas, programas e projetos para que a lei não caísse no abismo da expectativa?

Não precisamos de muitos malabarismos teóricos e políticos para perceber que o processo de promoção de políticas públicas sociais e inclusivas não acompanhou o conjunto normativo cidadão editado para as crianças e adolescentes pelo Estado brasileiro. Nas últimas décadas, inclusive, vemos o inverso, ou seja, o conjunto normativo sendo reinterpretado e até reescrito para atender aos desdobramentos concretos das políticas públicas aplicadas.

No campo do combate e a exploração sexual de crianças e adolescentes, a nossa Constituição estabeleceu através do § 4º do artigo 227 que:

“A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.”

Assim, é  possível afirmar que, ao longo destes 35 anos, desde a Constituição de 1988, existe um hiato entre o que a lei garantiu e o que a política social não assegurou, gerando uma frustração que precisa, inclusive, ser entendida no contexto da teoria do possível que se ancora na progressividade, especialmente dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Na prática, política pública para crianças e adolescente desde o aparelho de estado se resumiu a educação escolar que no artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, já demarca que a finalidade é o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Cooperação para proteção

No conjunto das agendas da cidadania da criança e do adolescente, quando tratamos das relativas a proteção integral no campo da prevenção, não identificamos nada muito diferente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu no título III, capítulo I, artigo 70. “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.”

Trata-se de um dispositivo que invoca o princípio de cooperação do artigo 227 da Constituição e incumbe a todos, família, sociedade e poder público, prevenir a ocorrência de qualquer ameaça ou violação de direitos humanos de crianças e adolescentes.

Entende-se aqui a ameaça e a violação de direitos a regra do artigo 98:

As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III – em razão de sua conduta.”

No mesmo capítulo sobre a prevenção frente as violações de direitos humanos de crianças e adolescentes, importante destacarmos o que o legislador apontou no campo estrutural das políticas públicas que demanda do Estado medidas concretas.

O artigo 70-A do ECA estabeleceu que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão elaborar políticas públicas para coibir de forma articulada toda forma de o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes.

No conjunto das ações sinalizada pelo mencionado artigo acima, as autoridades competentes entre outras medidas deverão promover campanhas educativas; a integração dos órgãos de proteção do sistema de Justiça com os conselhos de direitos e conselhos tutelares; a formação continuada e a capacitação dos profissionais de saúde, educação e assistência social e dos demais agentes que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente para identificação de evidências, ao diagnóstico e ao enfrentamento de todas as formas de violência contra esses sujeitos sociais; o apoio e o incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos que envolvam violência contra a criança e o adolescente; a promoção de estudos e pesquisas, de estatísticas e de outras informações relevantes às consequências e à frequência das formas de violência contra a criança e o adolescente para a sistematização de dados nacionalmente unificados e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; a promoção e a realização de campanhas educativas direcionadas ao público escolar e à sociedade em geral e a difusão desta lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, incluídos os canais de denúncia existentes; a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros, dos profissionais das escolas, dos Conselhos Tutelares e dos profissionais pertencentes aos órgãos para que identifiquem situações em que crianças e adolescentes vivenciam violência e agressões no âmbito familiar ou institucional; o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, dos conteúdos relativos à prevenção, à identificação e à resposta à violência doméstica e familiar.

Como se vê, são inúmeras as medidas que o legislador estabeleceu para prevenir toda forma de violência contra crianças e adolescentes, inclusive no ambiente escolar. Porém, o legislador conhece este ambiente e refletiu se este possui recursos arquitetônicos, materiais e humanos para cumprir o papel que está previsto nas legislações?

O ambiente escolar

A escola é o território onde as crianças e adolescentes passam boa parte dos seus dias. Ao longo de anos, lá eles têm, ou deveriam ter, acesso a refeições (quantidade depende do número de horas que permanecem no ambiente escolar) e a formação acadêmica (ler, escrever, fazer as operações matemáticas, identificar as sociedades ao longo da história, os biomas, …).

Há uma expectativa que esta instituição seja um espaço de acolhimento, um porto seguro desses sujeitos sociais que interagem neste meio e sem dúvida constroem vínculo com seus colegas e as figuras adultas (de autoridade, sejam professores, coordenadores, secretários, auxiliares, porteiros, merendeiras…).

O corpo docente, e todos os demais que atuam diretamente com os estudantes no chão das escolas, devem receber formação continuada para ter condições de lidar com os conflitos, respeitando a diversidade, sem acentuar diferenças, que podem acabar alimentando desigualdade, opressão, e consequente exclusão. Mas hoje, ao invés de proporcionar isso, o estado busca criminalizar os profissionais com esta lei sobre apresentação de antecedentes criminais.

Enquanto isso, as crianças e os adolescente precisam encontrar um porta voz na unidade escolar, com quem se sintam protegido. Nestes casos elas tendem a contar para este mediador suas dores e angústias. Quando não tem esta figura, tendem a se fechar. Os profissionais da educação precisam estar atentos e interferir quando isso acontece, buscando formas de acessar este jovem para que o mesmo interaja com o meio.

Os vínculos que constroem são fruto das identificações e ou projeções. Portanto, o adulto tem responsabilidade sobre o que cativam nas crianças e adolescentes, e o inverso também é verdadeiro, sendo a dinâmica de grupo e as histórias de cada um fundamentais neste processo, como afirma Pichon-Riviere. Este elo anda ameaçado com a lógica da “escola sem partido”, que estimula a filmar e denunciar seu professor, alimentando um vínculo negativo de perseguição e desconfiança.

É possível afirmar, como nos diz Guacira Lopes Louro, que os corpos são marcados pelos bancos da escola. Ou seja, este ambiente é fundamental na construção da cidadania de cada sujeito. Portanto implicâncias, bullying, conflitos que eclodam no espaço escolar precisam ser mediados de forma psicopedagógica para serem superados com o mínimo de dano a identidade que está se forjando de cada criança ou adolescente.

Vale ressaltar que a imputabilidade do sentimento de culpa e a punição, modus operandi da sociedade que vivemos, é um desastre pedagógico, que contribui para uma sociedade mais adoecida e violenta. Outrossim, a busca por uma mediação que visibilize os sujeitos sociais envolvidos, buscando compreender seus contextos, indica um caminho para superar os conflitos e assim prevenir que se prolonguem e se tornem mais complexos.

Função do professor

Mediar no chão da escola, ainda que todos os adultos o façam, é função eminente do (a) professor (a) que, se imbuído da pedagogia do afeto como nomeia Wallon, pode contribuir de forma substancial para a superação dos problemas. Mas como o (a) professor (a) fará o seu trabalho de forma plena sendo criminalizado (a) pelo Estado, que não consegue construir políticas publicas solidas para dar resposta aos anseios da sociedade, no que tange a violência dentro das escolas, muito marcadas pelo bullying?

Em menos de uma década, publicaram-se várias leis a respeito sem sucesso, e a mais recente, de 2024, traz essa novidade dos (as) profissionais da educação terem que a cada seis meses ou um ano, dependendo do tipo de vinculo, apresentar seus antecedentes criminais.

Logo, a demanda para proteção integral de crianças e adolescentes nas escolas dispõe de vários elementos edificantes da pedagogia, que, inclusive referente ao combate e ao enfrentamento ao abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes, somadas às regras estruturantes do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, podem pavimentar uma política pública segura sem repassar de forma criminalizante uma falsa responsabilidade do profissional de educação.

É a lógica da nova Lei nº 14.811 de 2024, sancionada e publicada em 15 de janeiro do corrente ano que alterou o ECA para incluir o artigo 59-A, com a seguinte orientação:

As instituições sociais públicas ou privadas que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes e que recebam recursos públicos deverão exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os seus colaboradores, as quais deverão ser atualizadas a cada 6 (seis) meses. Parágrafo único. Os estabelecimentos educacionais e similares, públicos ou privados, que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes, independentemente de recebimento de recursos públicos, deverão manter fichas cadastrais e certidões de antecedentes criminais atualizadas de todos os seus colaboradores.”

Fazer do levantamento dos antecedentes criminais dos profissionais de educação uma medida resolutiva, mesmo a título complementar, sem se ter estabelecido uma política de tratamento à luz da Lei Geral de Proteção de Dados, Lei nº 13.709/2018, é medida que se distância de uma razão protetiva infanto-juvenil e se impõe como uma pedagogia do Estado opressor com suas vestes criminalizadoras.

Importante ressaltar que a mencionada lei, no seu artigo 1º, tem o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

A ausência de uma norma administrativa do serviço público, em especial dos Conselhos de Educação, no âmbito estadual e municipal, que defina uma política de tratamento de dados das informações apuradas nas certidões de antecedentes criminais dos profissionais de educação, constitui medida violadora não só da Lei nº 13.709/2018, mas também da Constituição, por afronta aos valores da privacidade e dignidade da pessoa humana, na forma do artigo 5º da Carta Política.

Assim, entendendo que a necessária e indispensável proteção integral da criança e do adolescente no ambiente escolar é premissa da moderna democracia social brasileira e não pode estar combinada com medidas administrativa do arbítrio e da violação da dignidade de quem deve emprestar este cuidado, neste caso, professores e demais profissionais da educação.

Esperemos as medidas corretivas necessárias do poder público com uma  política institucional de tratamento de dados, mudando o rumo aparente estabelecido pela Lei nº 14.811 de 2024, afastando-se em definitivo das amarras criminalizadoras de inspiração foucotiana de vigiar e punir do Estado, baseada numa pedagogia do opressor, autoritária, meritocrática e excludente, dando lugar ao equilíbrio democrático de direitos entre protegidos e protetores! Reconstruindo a função social da escola na perspectiva do binômio “educar e cuidar”.

E neste 18 de maio de 2024, dia nacional de mobilização nacional pelos de combate e enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil,  que os descaminhos do Estado, com sua sanha opressora, não submerjam as verdadeiras medidas de proteção integral à criança e adolescentes, dando lugar a uma criminalização desnecessária do ambiente escolar.

  • Carlos Nicodemosé advogado do NN-Advogados Associados, membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).
  • Maria Eduarda Quiroga Fernandesé educadora, especialista em Economia Política (ENFF) e em Gênero e Sexualidade (Uerj) e membra da Executiva Nacional da CUT e da direção da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores/as da Educação).
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